Por Mari Monteiro
“Mike... Por
onde andará o Mike?
Assim que
ingressei no Serviço Público Estadual através de um concurso (muito difícil por
sinal e elaborado pela Cesgranrio), ocorreu algo inusitado. No dia da
atribuição, havia muitas salas para serem escolhidas. No meio delas, uma “nomenclatura”
diferente: “RECUPERAÇÃO DE CICLO”. Achei bonito aquilo. E mais. Achei louvável.
Imagine um professor conseguir recuperar um ciclo inteiro de aprendizagem (o
que significaria “recuperar” o que não havia sido aprendido desde a 1ª até a
então 4ª série do Ensino Fundamental.) Decidi que esta seria a minha sala de
trabalho do ano letivo de 2006. “Apenas” 25 alunos (as outras tinham em média
35 alunos). Fiquei animada!
No primeiro
dia de aula, lá estava eu, na porta e com um sorriso nos lábios para
recepcionar alunos e pais. Porém, aos poucos, o sorriso foi se fechando. A maioria dos alunos veio sozinha. As mães que vieram
juntas chegavam à porta, puxando as crianças pelos colarinhos e perguntavam: “É
aqui a sala dos repetente?”. Não dava tempo de dizer “Boa tarde, sou a professora
Mari, como vai?”
Logo no
inicio percebi que todos os alunos eram muito diferentes entre si, cada um com peculiaridades
bem marcantes. Ainda conheceremos mais alguns amigos desta turma através deste blog.
Por algum motivo, decidi começar pelo Mike. Um garoto de 12 anos, com sorriso
fácil. Parecia estar sempre feliz! Tudo era sorriso, até mesmo quando não
parecia estar bem e eu perguntava: “O que houve Mike?”. Ele sorria e dizia: “É
nada não fessora!!!” Quando alguém o perturbava, ele dizia sempre: “Sai da
minha vida muleke!”. E os “muleke” davam risada, mas o respeitavam. Essa frase
virou uma espécie de chavão na sala, brincávamos com ela e repetíamos a frase
para ele mesmo às vezes... e ele? Ele sorria e só!
De sua
história fora da escola , sabia muito pouco, era arredio. Somente na primeira
reunião de pais as coisas começaram a ficar mais claras para mim: sobre Mike e
sobre o “porquê” da chamada RECUPERAÇÃO DE CICLO. Ele não sabia nem ler e nem
escrever. Apenas fazia o que eu chamava de “graminha” (no pedagogês,
garatujas). E insistíamos em ensiná-lo, como insistíamos!!!
Chegada a primeira
reunião de pais, pude entender muitas coisas
sobre Mike e sobre a educação. Atendi cada pai/mãe individualmente; por
isso tenho tantas histórias pra contar desta sala. Mas, voltemos ao Mike. Após
cumprimentar seu pai, um senhor muito educado e simpático, introduzi o fatídico
assunto. Tarefa difícil. Já havia dito
algo parecido aos demais pais e cada um tinha uma justificativa mais
interessante que a outra. Vejamos como seria com o pai do Mike:
- Bom tarde
senhor Antônio.
- Boa tarde
Senhora Professora. (quase chorei de
emoção por ser solenemente chamada assim)
- Como vai
a família?
- Bem
demais e a da senhora?
- Também.
Obrigada.
Não nos
restava muito tempo, Ele havia chegado bem no final do período. Não pude fazer
muitos rodeios. Então, a notícia foi mesmo à queima-roupa.
- Senhor
Antônio, o senhor saberia me dizer por que o Mike está há 5 anos na escola e ainda não sabe ler ou
escrever?
- Como assim
professora?
- É. Ele
não sabe ler e nem escrever.
Tudo está tão nítido na minha memória como se fosse ontem.
Inclusive o timbre da voz deste senhor.
- Olha
Senhora professora. Vou ser sincero com a senhora. Ler, ele não lê muito bem
não. Quando eu peço pra ele ler, ele engasga , fica pensando no que vai
falar... Ele lê ruim demais. Mas,
escrever, ele escreve muito bem demais e depressa. A senhora quer ver?
Petrificada,
disse sim. Ele prontamente chamou o Mike, pediu seu caderno, abriu numa página qualquer...
Enquanto o pai foleava o caderno, mostrando as “graminhas” feitas pelo Mike, eu olhei para ele que sorriu o mesmo sorriso de sempre, mas desta vez, escondeu o rosto de mim e, depois, do pai. Hesitei, mas só por um segundo, olhei nos olhos do Sr. Rosangelo e perguntei:
Enquanto o pai foleava o caderno, mostrando as “graminhas” feitas pelo Mike, eu olhei para ele que sorriu o mesmo sorriso de sempre, mas desta vez, escondeu o rosto de mim e, depois, do pai. Hesitei, mas só por um segundo, olhei nos olhos do Sr. Rosangelo e perguntei:
- O Senhor sabe ler e escrever?
- Sim senhora. E é por isso que eu luto pra que o Mike continue firme nos
estudos.
- Entendo.
O senhor faz muito bem.
Eu não
tinha mais palavras. Apenas um nó na garganta. Despedi-me do pai e do Mike.
Sentei na minha mesa e fiquei por um tempo parada antes de começar a arrumar as
coisas para ir para casa. Nunca mais esquecerei este dia. O Mike, safo que era e livre de toda culpa, fingia que contava
uma história qualquer quando o pai pedia para que lesse.
Nos dias
que se seguiram, sentia um embrulho no estômago, um desconforto por não saber o
que fazer com as informações (não apenas sobre o Mike, mas também sobre os
outros). Era como se eu já fosse cúmplice daquilo tudo. Descobri que não se
tratava de Recuperação de ciclos, mas da regeneração de expectativas, de
autoestima, de honestidade e de
comprometimento social. Não consigo conceber o fato de alguém passar anos a fio
na sala de aula fingindo ler e escrever... Os professores não perceberam???
Enfim, Mike
ficou comigo durante todo o ano de 2006. No dia seguinte à reunião, pedi ao pai
que comparecesse à escola e lhe disse toda a
verdade. Eu e o Mike, que, com a cabeça baixa e nenhum esboço de sorriso no
rosto, confirmou tudo. Ele não aprendeu muita coisa. No final do ano, ele escrevia
e lia palavras simples e textos pequenos. Com os números, era um pouco melhor.
E... Surpresa! O Mike foi APROVADO! Sim, aprovado. Era a lei. Eu era obrigada a
aprová-lo. Adoeci com isso. Ele não estava preparado. ( E este fato, em
especial, expressa toda minha indignação com o sistema de ensino que ainda
continua aprovando alunos que não estão “prontos”). E lá foi o Mike frequentar
a 5ª série. Ele, suas poucas palavras aprendidas, toda autoestima que consegui
colocar no seu bolso com extrema dificuldade e uma boa dose de coragem para
ouvir, todos os dias, de boa parte dos professores que ele não sabia ler e nem
escrever. O problema é que esta verdade estava sendo dita e ouvida tarde
demais. Até hoje penso muito nele. Nunca mais o vi. Espero que esteja bem... E que
um dia possa, por um destes acasos providenciados por Deus, ler este artigo e dar notícias...
(É com imensa satisfação que os convido a ler a continuação deste artigo: "MIKE: O REENCONTRO!". CLIQUE NO LINK ABAIXO)
(É com imensa satisfação que os convido a ler a continuação deste artigo: "MIKE: O REENCONTRO!". CLIQUE NO LINK ABAIXO)