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EDUCAR É, ANTES, SENTIR... E TODOS SÃO CAPAZES DISSO.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Por onde andará o Mike?

Por Mari Monteiro

“Mike... Por onde andará o Mike?

Assim que ingressei no Serviço Público Estadual através de um concurso (muito difícil por sinal e elaborado pela Cesgranrio), ocorreu algo inusitado. No dia da atribuição, havia muitas salas para serem escolhidas. No meio delas, uma “nomenclatura” diferente: “RECUPERAÇÃO DE CICLO”. Achei bonito aquilo. E mais. Achei louvável. Imagine um professor conseguir recuperar um ciclo inteiro de aprendizagem (o que significaria “recuperar” o que não havia sido aprendido desde a 1ª até a então 4ª série do Ensino Fundamental.) Decidi que esta seria a minha sala de trabalho do ano letivo de 2006. “Apenas” 25 alunos (as outras tinham em média 35 alunos). Fiquei animada!

No primeiro dia de aula, lá estava eu, na porta e com um sorriso nos lábios para recepcionar alunos e pais. Porém, aos poucos, o sorriso foi se fechando. A  maioria dos alunos veio sozinha. As mães que vieram juntas chegavam à porta, puxando as crianças pelos colarinhos e perguntavam: “É aqui a sala dos repetente?”. Não dava tempo de dizer “Boa tarde, sou a professora Mari, como vai?

Logo no inicio percebi que todos os alunos eram muito diferentes entre si, cada um com peculiaridades bem marcantes. Ainda conheceremos mais alguns amigos desta turma através deste blog. Por algum motivo, decidi começar pelo Mike. Um garoto de 12 anos, com sorriso fácil. Parecia estar sempre feliz! Tudo era sorriso, até mesmo quando não parecia estar bem e eu perguntava: “O que houve Mike?”. Ele sorria e dizia: “É nada não fessora!!!” Quando alguém o perturbava, ele dizia sempre: “Sai da minha vida muleke!”. E os “muleke” davam risada, mas o respeitavam. Essa frase virou uma espécie de chavão na sala, brincávamos com ela e repetíamos a frase para ele mesmo às vezes... e ele? Ele sorria e só!

De sua história fora da escola , sabia muito pouco, era arredio. Somente na primeira reunião de pais as coisas começaram a ficar mais claras para mim: sobre Mike e sobre o “porquê” da chamada RECUPERAÇÃO DE CICLO. Ele não sabia nem ler e nem escrever. Apenas fazia o que eu chamava de “graminha” (no pedagogês, garatujas). E insistíamos em ensiná-lo, como insistíamos!!! 


Chegada a primeira reunião de pais, pude entender muitas coisas  sobre Mike e sobre a educação. Atendi cada pai/mãe individualmente; por isso tenho tantas histórias pra contar desta sala. Mas, voltemos ao Mike. Após cumprimentar seu pai, um senhor muito educado e simpático, introduzi o fatídico assunto.  Tarefa difícil. Já havia dito algo parecido aos demais pais e cada um tinha uma justificativa mais interessante que a outra. Vejamos como seria com o pai do Mike:

- Bom tarde senhor Antônio.
- Boa tarde Senhora Professora. (quase  chorei de emoção por ser solenemente chamada assim)
- Como vai a família?
- Bem demais e a da senhora?
- Também. Obrigada.
Não nos restava muito tempo, Ele havia chegado bem no final do período. Não pude fazer muitos rodeios. Então, a notícia foi mesmo à queima-roupa.
- Senhor Antônio, o senhor saberia me dizer por que o Mike está há  5 anos na escola e ainda não sabe ler ou escrever?
- Como assim professora? 
- É. Ele não sabe ler e nem escrever.
Tudo  está tão nítido na minha memória como se fosse ontem. Inclusive o timbre da voz deste senhor.
- Olha Senhora professora. Vou ser sincero com a senhora. Ler, ele não lê muito bem não. Quando eu peço pra ele ler, ele engasga , fica pensando no que vai falar... Ele lê ruim demais.  Mas, escrever, ele escreve muito bem demais e depressa. A senhora quer ver?
Petrificada, disse sim. Ele prontamente chamou o Mike, pediu seu caderno, abriu numa página qualquer...

 Enquanto o pai foleava o caderno, mostrando as “graminhas” feitas pelo Mike, eu olhei para ele que sorriu o mesmo sorriso de sempre, mas desta vez, escondeu o rosto de mim e, depois, do pai. Hesitei, mas só por um segundo, olhei nos olhos do Sr. Rosangelo e perguntei:


- O Senhor sabe ler e  escrever?
- Sim senhora.   E é por isso que eu luto pra que o Mike continue firme nos estudos.
- Entendo. O senhor faz muito bem.

Eu não tinha mais palavras. Apenas um nó na garganta. Despedi-me do pai e do Mike. Sentei na minha mesa e fiquei por um tempo parada antes de começar a arrumar as coisas para ir para casa. Nunca mais esquecerei este dia. O Mike, safo que era e livre de toda culpa, fingia que contava uma história qualquer quando o pai pedia para que lesse.

Nos dias que se seguiram, sentia um embrulho no estômago, um desconforto por não saber o que fazer com as informações (não apenas sobre o Mike, mas também sobre os outros). Era como se eu já fosse cúmplice daquilo tudo. Descobri que não se tratava de Recuperação de ciclos, mas da regeneração de expectativas, de autoestima, de honestidade e  de comprometimento social. Não consigo conceber o fato de alguém passar anos a fio na sala de aula fingindo ler e escrever... Os  professores não perceberam???

Enfim, Mike ficou comigo durante todo o ano de 2006. No dia seguinte à reunião, pedi ao pai que  comparecesse à escola e lhe disse toda a verdade. Eu e o Mike, que, com a cabeça baixa e nenhum esboço de sorriso no rosto, confirmou tudo. Ele não aprendeu muita coisa. No final do ano, ele escrevia e lia palavras simples e textos pequenos. Com os números, era um pouco melhor. E... Surpresa! O Mike foi APROVADO! Sim, aprovado. Era a lei. Eu era obrigada a aprová-lo. Adoeci com isso. Ele não estava preparado. ( E este fato, em especial, expressa toda minha indignação com o sistema de ensino que ainda continua aprovando alunos que não estão “prontos”). E lá foi o Mike frequentar a 5ª série. Ele, suas poucas palavras aprendidas, toda autoestima que consegui colocar no seu bolso com extrema dificuldade e uma boa dose de coragem para ouvir, todos os dias, de boa parte dos professores que ele não sabia ler e nem escrever. O problema é que esta verdade estava sendo dita e ouvida tarde demais. Até hoje penso muito nele. Nunca mais o vi. Espero que esteja bem... E que um dia possa, por um destes acasos providenciados por Deus, ler  este artigo e  dar notícias...

(É com imensa satisfação que os convido a ler a continuação deste artigo: "MIKE: O REENCONTRO!". CLIQUE NO LINK ABAIXO)

Livro: "O Pequeno Príncipe" em Braille!

Por Kássia Rocha
O rumor das conversas, sobre este livro, surgiu no facebook...
Fiquei encantada! 


O meu desejo, como educadora e cidadã, é que amplie se mais este segmento, tanto na criação e estruturação de outros livros, que são essenciais para que o "ouvinte" passe a ser um leitor ativo, quanto na compra dos livros em Braille, no qual ocorre uma escassez, ao tentarmos encontrar pontos de venda e, até pela internet, não encontramos editoras que invistam nesta linha, de livros em Braille.

As crianças precisam deste contato com o livro, não somente ouvir as histórias, mas que se alfabetize em Braille, se torne um cidadão alfabetizado. Que haja mais visibilidade na categoria de Libras (Língua Brasileira de Sinais). E que nós como seres conscientes, enxerguemos o nosso próximo com igualdade e apreço!


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