POR MARI MONTEIRO
Imagine a seguinte situação: num dia qualquer, no auge de
sua carreira e da sua vida pessoal, de repente, começa a lhe “fugir” algumas
palavras; palavras muito familiares ao seu cotidiano, à sua especialidade. Em
outros momentos, você simplesmente não consegue voltar para casa após uma
corrida feita há tempos no mesmo local. Preocupante, no mínimo...
No filme “PARA SEMPRE ALICE”, questões relacionadas ao Mal
de Alzheimer são abordadas de modo IMPACTANTE e PROFUNDO. O que nos remete a
muitas reflexões. Eu, particularmente, me “vesti” da personagem Alice e
vivenciei todos os seus dramas e todos os seus medos. A propósito, medos que me
rondam desde a infância: medo de esquecer rostos; olhares; nomes; lembranças;
momentos... Deve ser daí que advém a minha “quase fixação” por retratos (não
gosto de falar fotografias). Eles nos ajudam a relembrar, eternizam momentos
que, obviamente, só podem voltar em nossas lembranças... Mas, e se eu me esquecesse
de tudo?
Além disso, o roteiro traz abordagens muito interessantes
sobre as alternativas encontradas por Alice para prorrogar o máximo possível
suas lembranças.
Enfim, sempre que termino de ver um filme, fico com que mais
me tocou. Posso contar isso aqui porque não considero um spoiler e a
interpretação de filmes, livros etc é algo muito pessoal. Nesse caso, fico com
a valorização dos pequenos acontecimentos que, muitas vezes, não passam
despercebidos e; por isso, logo são esquecidos. No entanto, estes momentos
podem ser as lembranças mais belas que temos de nossas vidas...
Para encerrar, por ora, quero compartilhar um texto no qual,
empregando uma ironia peculiar, Rubem Alves complementa a temática abordada no
filme. Vale a pena ler... Deleite-se e; sobretudo, não se esqueça dele tão
cedo.
Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me
convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um
especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só
parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.
Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que do meu ponto
de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e
obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh,
Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei. Nietzsche ficou
louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se. Wittgenstein
alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com
tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica.
Maiakovski suicidou-se. Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão
a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente
esquecidos.
Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as
ideias comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes
ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem-unida,
jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado;
nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, basta fazer o que fez a
Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme!) ou ter um amor proibido ou,
mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou. Pensar é
coisa muito perigosa...
Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elas
sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata. Sendo donos
do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. Claro que
nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de
se submeter se fosse pedir emprego numa empresa. Por outro lado, nunca ouvi
falar de político que tivesse estresse ou depressão. Andam sempre fortes em
passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas.
Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso
apresso-me aos devidos esclarecimentos. Nós somos muito parecidos com computadores.
O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de
duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento
duro", e a outra denomina-se software, "equipamento macio". O
hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito.
O software é constituído por entidades "espirituais" - símbolos que
formam os programas e são gravados nos disquetes.
Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do
cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é
constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do mesmo
jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades
levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o programa mais
importante é a linguagem.
Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos
no software. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que chamar
psiquiatras e neurologista, que virão com suas poções químicas e bisturis
consertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto,
poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de
fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar
dentro dele. Assim, para lidar com o software há que fazer uso de símbolos. Por
isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale de recursos
físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas,
humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas.
Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma
peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é sensível
às coisas que o seu software produz. Pois não é isso que acontece conosco?
Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos do Drummond e o corpo
fica excitado. Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e os
acessórios, o hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e de
se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a
comporta e se arrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas
pessoas que citei no princípio: a música que saía do seu software era tão
bonita que o seu hardware não suportou.
Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de
oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, saúde mental
até o fim dos seus dias. Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e
comoventes. A beleza é perigosa para o hardware. Cuidado com a música. Brahms e
Mahler são especialmente contraindicados. Já o rock pode ser tomado à vontade.
Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura
especializada em impedir o pensamento. Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por
que se arriscar a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos
diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e
caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas
iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato.
Seguindo esta receita você terá uma vida tranquila, embora banal. Mas
como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E,
em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se aposentará
para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar
tal momento, você já terá se esquecido de como eles eram.
Rubem Alves (In. http://pensador.uol.com.br/rubem_alves_textos
- acesso em 18/09/2015)
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